A história da queda do homem, a sedução da serpente, a ganância e suas consequências.
Numa historia rica em poemas e musicas, a saber;
“Tu és fiel” Thomas Obediah Chisolm/ William Marion Runyan
“Marcha Fúnebre” de Chopin
“Schindler´s List Theme” John Williams
“Morte e vida severina” João Cabral de Melo Neto
“Funeral de um lavrador” Chico Buarque e João Cabral de Melo Neto
“O açúcar” de Ferreira Gullar.
“Morte do Leiteiro” Carlos Drummond de Andrade
“Mais perto” Sarah Flower Adams e João Gomes Da Rocha
ATO I
Cenário: Luzes apagadas e silêncio; paulatinamente as luzes vão se acendendo e a música “Tu és fiel” (instrumental) sendo executada. Ateliê com vários quadros pintados sob cavaletes (sugestão: seis, cada um representando um dia da criação e um sétimo, o negro).
Personagens: Um artista (Deus) e um homem.
Cena I
(O homem, sentado, assovia “Tu és fiel”, enquanto o artista (Deus), dançando ao ritmo da música, dá as últimas pinceladas numa das obras. Terminado o quadro, senta-se ao lado do homem.)
HOMEM: (levantando e contemplando o quadro) Obrigado, Deus! É fabuloso estar assim, mergulhado em tão afáveis encantos. Já não resta um mínimo fragmento de caos.( Silêncio. Contempla a criação e retoma o assovio de “Tu és fiel”. )
DEUS: O momento é de desfrute. Sinta a beleza de cada traço e verso que harmonizam a criação. Aprecie.
(“Tu és fiel” volta a ser executada. O homem e Deus, ao ritmo da música, se movimentam com leveza no palco da criação. )
DEUS: Vê este quadro? Goze toda a criação, homem. Deste quadro, porém, mantenha-se distante. Ele esconde toda miséria, toda desgraça, todo caos. Nunca retire este véu, pois o dia que fizeres, certamente morrerá.
(As luzes se apagam.)
Cena II
O homem, sentado ao redor da criação, lê um livro de poesias. A serpente entra.
SERPENTE: (contemplando a criação) Em quanta beleza andas mergulhado, homem!
HOMEM: Criações de meu Pai.
SERPENTE: Provavelmente, és muito feliz…
HOMEM: Felicidade? Felicidade não me falta, senhorita.
SERPENTE: Mas certamente… sua felicidade poderia ser maior.
HOMEM: Não entendo como isto poderia se dar.
SERPENTE: Algo lhe falta, homem. Há uma treva densa em teus olhos e podes perfeitamente desfazê-la.
HOMEM: Diz enigmas senhorita. Não compreendo.
SERPENTE: Pois logo compreenderás… (alegre, a Serpente sai de cena)
HOMEM: (em monólogo) Quanta loucura diz esta senhorita. Que trevas densas são estas, se enxergo perfeitamente bem? (Confuso) E ainda diz que tenho o poder de desfazê-la…
(A luz diminui gradualmente de intensidade, ficando o cenário a “meia-luz”. O homem senta-se pensativo. Entra a Liberdade.)
LIBERDADE: (Se movimenta com desenvoltura no palco.) Homem, sou a Liberdade. Faço parte de tua existência, tornando-a mais inestimável, mais distinta(. Silêncio. Como se observasse o mar. ) O mar. Infinito. Infinitamente sublime. No entanto, não há, entre estas gotas infinitas, sequer uma mísera gota de liberdade. Quando está revolto, não é capaz de conter sua revolta. Quando calmo, é com uma tranquilidade racional que beijará a areia. Neste caso, beijos apaixonados são impossíveis! (Olha para o sol.) O sol. Uma forma definida: trezentos e sessenta graus. Um movimento determinado: de leste a oeste. Sem inovações na forma, sem caminhos alternativos. O sol, este estranho astro que desvenda os mistérios do Oriente e do Ocidente, nunca desvendou, nunca desvendará sequer um singelo traço da liberdade. (Silêncio. ) Definitivamente, o mar e sol não são livres. Também não o são os planetas, as galáxias. Chega a ser cômico. Em você, homem, tão frágil, ocupando um espaço ínfimo no Universo infinito, em você, a liberdade (aponta para si) veio residir. (Silêncio.) Homem, sou tua redenção, mas posso perfeitamente ser tua miséria. A escolha é tua.
(A Liberdade sai. A luz se acende completamente. O homem se levanta, andando inquieto e pensativo. Volta a Serpente.)
Cena III
(A luz se acende completamente. O homem se levanta, andando inquieto e pensativo. Entra a Serpente com uma maçã.)
SERPENTE: Vejo que há alguma inquietação em teu semblante, homem.
HOMEM: É possível.
SERPENTE: Sei. Andou pensando no que te disse, nas trevas?
HOMEM: Disse loucuras, senhorita!
SERPENTE: Não. Disse apenas a verdade. Mas sabe, homem, você me agrada. Vou além das palavras, lhe mostrarei por imagens que te digo a verdade. Venha comigo! (leva o homem até o quadro oculto)
SERPENTE: Podes ver este véu negro?
HOMEM: Claro!
SERPENTE: Pois eis o véu que encobre tua vista, homem.
HOMEM: Não entendo.
SERPENTE: Podes e deves descerrá-lo. É o que lhe falta para alcançar a plenitude.
HOMEM: Não seja tola, senhorita! Deus, o Criador, disse justamente o contrário. Provaria a morte se retirasse este véu.
SERPENTE: Deus é um sujeito bom. Todavia, têm um grave defeito: quer todo poder para si! (diz sussurrando). Certamente, estás em boa situação, é bom dominar os animais selvagens, as plantas silvestres, o rio. Melhor seria dominar tudo, inclusive a si mesmo. Conhecer tudo! Ser igual a Deus Ser igual a Deus, homem! Ver como ele vê é uma possibilidade, basta descerrar este véu! Existiria acaso, coisa melhor? Num único gesto (neste momento coloca nas mãos do homem a maçã que porta consigo), e poderá como Deus, dissipar as trevas e fazer brilhar a mais intensa luz. Ser igual a Deus! (a serpente sai de cena gritando a frase).
Cena IV
(O homem caminha pensativo e inquieto. Passando pelo quadro oculto, encara-o com intensidade. Por fim, depois de algumas hesitações, retira o véu que o encobre. Imediatamente a luz se apaga e começa a ser executada a “Marcha Fúnebre” de Chopin. A serpente entra derrubando todos os cavaletes do Ateliê. O homem grita desesperado.)
Cena V
[A luz se acende. Ao som de uma música triste (sugestão: “Schindler´s List Theme”) o homem se debate em desespero e miséria. Olha com tristeza o caos que o rodeia. Terminada a execução da música, as luzes se apagam gradualmente. O homem sai.]
Cena VI – Um breve relato da condição de miséria do homem pós-queda, narrado pela poesia brasileira.
(As luzes se acendem gradualmente. Entra um segundo homem, ergue um cavalete e prepara algumas tintas para começar a pintar. Em seguida, o primeiro homem retorna.)
HOMEM: Quem é você?
SEGUNDO HOMEM: Procuro uma terra para plantar. Tenho fome.
HOMEM: Pois procure outra, esta terra já me pertence.
SEGUNDO HOMEM: E desde quando a terra tem um dono?
HOMEM: Desde quando? Desde já. E esta, toda esta terra, é minha (fala olhando ao redor com expressão de ganância). Saia logo…
SEGUNDO HOMEM: Não posso entender o que você diz. (Continua preparando as tintas.)
HOMEM: Digo que esta terra é minha. Saia logo, rapaz.
SEGUNDO HOMEM: Pois não saio, esta terra também é minha…
HOMEM: É o que veremos…
(Como o segundo homem continua seu trabalho, é atacado, caindo morto. As luzes se apagam. O homem sai de cena. Enquanto a luz se acende, entram três lavradores enlutados. Colocam o homem morto no centro, jogam flores sobre ele. )
“Morte e vida severina” João Cabral de Melo Neto
Enquanto um Lavrador recita com tristeza no olhar, os outros mantêm a face curvada, trazendo em suas mãos, em forma de concha, pétalas de flor.
LAVRADOR I: Esta cova em que estás / com palmos medida, / é a conta menor que tiraste em vida.
LAVRADOR II: É de bom tamanho / nem largo nem fundo / é a parte que te cabe deste latifúndio.
LAVRADOR III: Não é cova grande / é cova medida / é a terra que querias ver dividida.
LAVRADOR I: É uma cova grande / para teu pouco defunto / mas estarás mais ancho que estavas no mundo.
LAVRADOR II: É uma cova grande / para teu defunto parco / porém, mais que no mundo te sentirás largo.
LAVRADOR III: É uma cova grande / para tua carne pouca / mas a terra dada não se abre a boca.
(Os lavradores enterram o morto, enquanto se executa a música “Funeral de um lavrador” (Chico Buarque e João Cabral de Melo Neto). )
(Entra uma mulher, bem trajada. Nas mãos, um copo de café e uma colher de açúcar. Recita a poesia “O açúcar” de Ferreira Gullar.)
HOMEM: O branco açúcar que adoçará meu café / nesta manhã de Ipanema / não foi produzido por mim / nem surgiu dentro do açucareiro por milagre. Vejo-o puro / e afável ao paladar / como beijo de moça, água na pele, flor / que se dissolve na boca. Mas este açúcar / Não foi feito por mim. Este açúcar veio / da mercearia da esquina e tampouco o fez o Oliveira, dono da mercearia. Este açúcar veio (neste instante, entra um boia-fria, carregando uma foice com expressão cansada e triste) / de uma usina de açúcar em Pernambuco / ou no Estado do Rio / e tampouco o fez o dono da usina. Este açúcar era cana / e veio dos canaviais extensos / que não nascem por acaso / no regaço do vale. Em lugares distantes, onde não há hospital / nem escola, / homens que não sabem ler e morrem / aos vinte e sete anos / plantaram e colheram a cana / que viraria açúcar. / Em usinas escuras, / homens de vida amarga e dura / produziram este açúcar / branco e puro / com que adoço meu café esta manhã em Ipanema.
As luzes apagadas. O homem dorme num canto do cenário. Entra um leiteiro e um poeta que declama uma poesia, que é uma triste história. (“Morte do Leiteiro” Carlos Drummond de Andrade). Uma música acompanha a declamação da poesia (sugestão: Requiem for a dream – Chopin)
POETA:
Há pouco leite no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há muita sede no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há no país uma legenda,
que ladrão se mata com tiro.
Então o moço que é leiteiro
de madrugada com sua lata
sai correndo e distribuindo
leite bom pra gente ruim.
Sua lata, suas garrafas,
e seus sapatos de borracha
vão dizendo aos homens no sono
que alguém acordou cedinho
e veio do último subúrbio
trazer o leite mais frio
e mais alvo da melhor vaca
para todos criarem força
na luta brava da cidade.
Na mão a garrafa branca
não tem tempo de dizer
as coisas que lhe atribuo
nem o moço leiteiro ignaro,
morador na Rua Namur,
empregado no entreposto,
com 21 anos de idade,
sabe lá o que seja impulso
de humana compreensão.
E já que tem pressa, o corpo
vai deixando à beira das casas
uma apenas mercadoria.
E como a porta dos fundos
também escondesse gente
que aspira ao pouco de leite
disponível em nosso tempo,
avancemos por esse beco,
peguemos o corredor,
depositemos o litro…
Sem fazer barulho, é claro,
que barulho nada resolve.
Meu leiteiro tão sutil,
de passo maneiro e leve,
antes desliza que marcha.
É certo que algum rumor
sempre se faz: passo errado,
vaso de flor no caminho,
cão latindo por princípio,
ou um gato quizilento.
E há sempre um senhor que acorda,
resmunga e torna a dormir.
Mas este acordou em pânico
(ladrões infestam o bairro),
não quis saber de mais nada.
O revólver da gaveta
saltou para sua mão.
Ladrão? se pega com tiro.
Os tiros na madrugada
liquidaram meu leiteiro.
Se era noivo, se era virgem,
se era alegre, se era bom,
não sei,
é tarde para saber.
Mas o homem perdeu o sono
e todo, e foge pra rua.
Meu Deus, matei um inocente.
Bala que mata gatuno
também serve pra furtar
a vida de nosso irmão.
Quem quiser que chame médico,
polícia não bota a mão
neste filho de meu pai.
Está salva a propriedade. (ênfase)
A noite geral prossegue,
a manhã custa a chegar,
mas o leiteiro
estatelado, ao relento,
perdeu a pressa que tinha.
Da garrafa estilhaçada,
no ladrilho já sereno
escorre uma coisa espessa
que é leite, sangue… não sei.
Por entre objetos confusos,
mal redimidos da noite,
duas cores se procuram,
suavemente se tocam,
amorosamente se enlaçam,
formando um terceiro tom
a que chamamos aurora.
Cena VII
(O homem entra e prepara o ambiente para iniciar seu trabalho. Em seguida, entra Deus.)
DEUS: Onde está o teu irmão, homem? Aquele a quem tem continuamente negado o alimento e a dignidade?
HOMEM: Não sei. Acaso sou tutor de meu irmão (diz fugindo)?
DEUS: Que fizeste? (olha profundamente nos olhos do homem)
(Silêncio. O homem, triste, reflete. Deus se posta num dos cantos do cenário.)
HOMEM: Diga-me, Pai, haverá para tudo isto uma solução? (vai na direção de Deus) Desde que descerrei este véu, só a tristeza me faz companhia (desesperado).
Entra a Serpente.
SERPENTE: Porque o desespero, homem? Toda escolha tem seus efeitos colaterais. De qualquer forma, escolhestes bem…
HOMEM: Trata-se de uma queda (irritado).
SERPENTE: Naturalmente. Uma queda para cima. Agora, homem, és dono de si. És livre como um pássaro! Entenda: este caos é a tua salvação! Para que Deus fosse o que é (encara Deus) o caos precisou existir. Todo artista precisa do caos! O que te fiz foi um imenso favor! Sou uma humanista! Amo a humanidade!
DEUS: Perceba homem, a escolha foi tua! A escolha sempre foi tua! Se quiseres ser dono de si, nada lhe impede. Acaso existiam pregas naquele véu negro que descerraste? Ocorre, homem, que como dono de si, jamais poderá dar ordem ao caos, jamais poderá dissolver a dor que lhe abate o espírito, jamais encontrará a perfeita harmonia, jamais será realmente homem. Neste caso, o sangue continuará se derramando, o leite e a terra continuarão em mão de poucos. Há quem me culpe, há quem diga que este caos foi provocado por mim. Mentem. (Silêncio.) Se há solução para o caos de tua alma? Naturalmente. Sou tua solução. Dê-me tua vida e juntos, restauraremos a ordem…
(Silêncio. O homem se dirige para Deus, enquanto é executada a música “Mais perto” (instrumental, se possível, ao violino). Os dois se abraçam e colocam em ordem os quadros derrubados.)
FIM
Alysson Amorim
Primeira Igreja Batista em Palmeiras
Belo Horizonte, MG
Autores:
Alysson Amorim
Estilos:
Dramas
Temas:
Evangelismo
Diversos:
2013