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ARRUMANDO A CASA

ARRUMANDO A CASA escrito sobre o material para uma faxina.

A casa de Fernanda e Eduardo é invadida por parentes no Natal.

O caos resultante os leva a questionar o significado do Natal.

Problemas conhecidos, problemas ocultos e outros novos… Todos veem a tona no natal desta família.

 

Personagens
FERNANDA:    Uma mulher estressada.
EDUARDO:    Marido de Fernanda.
CARLA:    14 anos, filha de Fernanda e Eduardo.
PAULO:    10 anos, filho de Fernanda e Eduardo.
ANA:    Esnobe e hipocondríaca.
MAX:    Marido de Ana.
VALÉRIA:    Mulher grande e forte. Saiu recentemente da prisão.
ROBERTO:    Quinto marido de Valéria. Fugitivo.
MICHELE:    5 anos. Filha de Valéria.
SÍLVIA:    Mãe recentemente “reformada” de Eduardo.
WILIAM:    Irmão desaparecido de Fernanda.

 

Texto

 


CENA 1
(Palco: Uma cozinha moderna e sala de jantar, com acesso a um hall. Eduardo entra, senta-se à mesa e começa a ler o jornal. Fernanda entra, frenética)

FERNANDA:       O que você está fazendo sentado aí?
EDUARDO:       Estou lendo o jornal. Você sabia que eles vão...
FERNANDA:       Como você consegue ler em uma hora dessas? Eu tenho a casa inteira para limpar. Você já viu o banheiro lá de cima? A poeira nele já está se reproduzindo. E aquele cheiro, de onde ele vem? E você já viu a sala? As crianças são extremamente preguiçosas, e eu nem preciso dizer de que lado da família eles puxaram isso. Você já percebeu que eu sou a única que trabalha por aqui? Se não fosse por mim, eu tenho certeza que você iria se perder na bagunça! E para piorar, eu ainda tenho que cozinhar o peru, e depois...
EDUARDO:       Fernanda respire fundo. Respire... Respire... Repita comigo: “Nós vamos ter um Natal calmo e tranquilo. Nós vamos ter um Natal calmo e tranquilo.” Sente-se por um segundo e (vai até o armário e pega uma barra de chocolate) coma um pouco de chocolate.
FERNANDA:       Como você pode pensar em se sentar... (Para e respira fundo, bem fundo) OK, eu me sinto melhor. Você quer realmente que eu me sente e respire? Sua mãe vem amanhã! Me dá esse chocolate. (Pega o chocolate, abre e começa a comer. Ela come tão rápido que fica com chocolate por toda a boca).
EDUARDO:       É... Mas é só a minha mãe. Qual é o problema?
FERNANDA:       (Imitando Eduardo) É só a minha mãe. (Agarra Eduardo pelos ombros e começa a chacoalhá-lo) É só a sua mãe, é só a sua mãe!!! Respire, respire...
EDUARDO:       OK, a minha mãe é meio... (Pausa) Intensa.
FERNANDA:       Meio intensa? Sua mãe é insana! Vou te dizer uma coisa: sua mãe faz a Dercy Gonçalves parecer uma escoteira! Sua mãe é meio pitbull e meio monge. Ela poderia ser o próprio anti-Cristo! Você sabia que se inspiraram nela em um bom dia para criarem o Darth Vader? Ela nem precisou ir para o lado negro, ela É o lado negro! (Agarra as bochechas de Eduardo) Ela limpa a casa todos os dias, e limpa duas vezes no sábado, só para o caso de algum rei aparecer para o almoço do domingo. E é ALMOÇO de domingo, não é só jogar alguma coisa no micro-ondas. É um episódio do “Master Chef”! Você sabia que...
EDUARDO:       Amor, aqui, coma mais um chocolate.
FERNANDA:       Ah, agora entendo! Você está do lado dela. Ela vai entrar por aquela porta, vai me dar aquela olhada de cima a baixo e dizer: “Fernanda, parece que você engordou. Acho que você está comendo muito chocolate. Sabe, eu uso o mesmo tamanho de roupa desde quando eu me casei, há 38 anos”. Estou avisando, Eduardo, é melhor você ter o telefone da polícia na discagem rápida do seu telefone, porque aquela mulher ainda vai me enlouquecer!
EDUARDO:       OK, então a minha mãe gera eletricidade estática o suficiente para... Iluminar uma pequena cidade. Mas você também não é exatamente a Miss Pacífica e Fácil de Conversar no momento. Esqueci alguma coisa? (Pega um chocolate e o coloca entre sua face e a de Fernanda) E não machuque o chocolate!
FERNANDA:       Desculpe, eu estou um pouco estressada. Mas a sua mãe é tão... Eu não sei, ela consegue me fazer ser um monstro. Quando ela diz que está vindo nos visitar, eu me sinto obrigada a fazer tudo perfeito. E parte de mim perde o controle. Eu estou te avisando, se ela pensar em pegar aquele lenço e passar na parte de cima da geladeira de novo, e vou... (Pausa) pegar aquele corpo-que-não-muda-desde-a-puberdade e jogá-lo do outro lado da rua. Não me chamam de quebra-ossos à toa!
EDUARDO:       Você andou assistindo MMA de novo? Você sabe o que acontece quando você assiste essa coisa. O Ministério Público adverte: você sabe que não podemos comprar cadeiras novas. Não, eu sei exatamente o que você vai fazer. Você vai sorrir e perguntar a ela se ela quer mais café, ou perguntar se ela tem alguma dica sobre como remover manchas de chá do polyester. Eu já vi esse filme antes um milhão de vezes: o velho truque de desvirtuar e mudar de assunto que vocês aperfeiçoaram tão bem ao longo dos anos.
FERNANDA:       Engraçadinho. Por que você sempre faz piada dos meus sentimentos? Bem, pelo menos eu tenho algum tempo.
EDUARDO:       Você quer que eu seja sério, OK, que tal: “É Natal, tempo de alegria, felicidade e perdão”. Você sabe: jogos de cartas, castanhas assadas na churrasqueira, e todas essas coisas.
FERNANDA:       Natal ou não, sua mãe me deixa louca. Eu ficarei muito mais feliz DEPOIS do Natal. E, aliás, de onde você tirou este chocolate?
EDUARDO:       Se você quer saber, eu tenho um estoque secreto que eu mantenho para esses casos de emergência. E a visita da minha mãe também conta. Eu comprei uma caixa de vinte quilos há alguns anos, para estes casos.
FERNANDA:       (Coloca a mão no estômago, como se sentisse doente) Que ótimo! Eu estou no meio de uma crise emocional e você tenta me envenenar com vinte quilos de chocolate vencido. Eu me sinto muito melhor agora.
EDUARDO:       Feliz Natal, amor. Eu amo você...
FERNANDA:       Pode parar, isso não vai funcionar. Eu já fiz uma lista de tarefas que ainda faltam. Por que você não...
EDUARDO:       Eu acho que é hora de... Escovar meus dentes! Eu não quero uma gengivite no Natal. Tchau, amor, eu te amo. (Sai correndo)

 

 

Cena 2
(Fernanda, Eduardo, Carla, e Paulo estão na mesa, embrulhando os presentes, quando ouvem batidas na porta)
CARLA:       Eu atendo! (E corre até a porta)
ANA:       Oh, você deve ser a Carla, meu Deus, como você cresceu! Já é quase uma mulher. Mas precisamos dar um jeito nesse cabelo. (Carla olha para ela sem entender nada) Você não se lembra de mim, mas eu sou a sua prima... Bom, prima de segundo grau, do lado da sua mãe. Eu sou Ana, de <algum lugar longe>, na verdade, de <algum lugar perto do lugar longe>. Este é o meu marido Max. Com certeza a sua mãe já falou de mim?!
MAX:       Prazer em te conhecer.
ANA:       Mas que clima maluco! Saia da minha frente para eu poder colocar minhas malas Louis Vuitton aí dentro. Eu não quero que esse calor faça o couro rachar. Você sabia que essas malas não são feitas de couro de verdade, mas de um composto plástico feito para parecer, sentir e cheirar igual a couro de verdade? Eu nunca poderia usar couro de verdade e ter uma pobre vaquinha na minha consciência. (Estala os dedos) Max, rápido com estas malas!
CARLA:       (Gritando) MÃE, TEM ALGUÉM AQUI QUE QUER VER VOCÊ!
ANA:       Mas você precisa gritar assim tão alto? Você sabia que as ondas sonoras são prejudiciais para a mucosa vestigial? Eu sinto muito pela sua pele.
CARLA:       (Gritando ainda mais alto) MÃE!!!
FERNANDA:       Ana é você? (Se abraçam)
ANA:       Fê, eu não acredito. Não tenho notícias suas há anos. É claro que ao olhar para a sua casa, eu entendo porque você deve estar com vergonha.
FERNANDA:       Faz tempo sim, mas o que você faz aqui?
ANA:       Menina, demoramos tanto para chegar aqui, mas olha só, agora você tem tempo para sentar e ouvir os meus problemas. E antes que eu me esqueça, este é o meu marido Max. Max é um amor, ele faz uma pedicure de morrer... Tire os seus sapatos e ele já começa agora mesmo.
FERNANDA:       Oh, me desculpe, me deixe apresentar minha família. Eduardo, Carla, Paulo, venham aqui. Eduardo, você se lembra da Ana? (Eduardo fica confuso) Foi ela quem nos deu aquela garrafa de Tartuffo Bianco, e aquele lindo jogo de garfos para scargot de presente de casamento.
EDUARDO:       Mas que bom finalmente conhecer você! E eu devo dizer que o seu gosto para Tartuffo Bianco é excelente. E aqueles garfos, dificilmente passa um dia sem que os usemos para algo especial. Você já experimentou o scargot com este novo óleo 10w40 da Pennzoil? Isso realmente abre o apetite.  Bon Appetite.
ANA:       Fernanda, você nunca me disse que o seu marido era tão charmoso, e obviamente compartilhamos o mesmo gosto por cozinha francesa.
FERNANDA:       Sim, ele é cheio de surpresas. Sua maior especialidade é o chocolate. Você já conheceu a minha filha, Carla, e este é o meu mais novo, Paulo.
PAULO:       (Dá um passo à frente) Prazer em conhece...
ANA:       (Engasga) Max, venha aqui! Olhe isso! (Ana agarra o rosto de Paulo) Eu não acredito, eu acho que esse menino tem um grave defeito no rosto. Fascinante, eu nunca tinha visto um tão de perto. Paulo, você deve estar muito envergonhado. Eu sinto muito por você. Fernanda, eu espero que você não esteja usando Polietileno-Glicol-Sterradiano para limpar a casa. Sabia que alguns cientistas da Bolívia acreditam que essa é a maior causa de espinhas?  Paulo, na minha mala eu tenho algo que vai limpar isso bem rápido: acaba de ser lançado na Islândia. É feito de saliva de Alpaca, leite de cabra e um toque de manjericão. Você sabia que os islandeses têm a pele quase perfeita?
PAULO:       Obrigado, eu vou usar. Com licença, mas eu vou escovar meus dentes. Eu não quero passar o Natal com gengivite.
ANA:       Fernanda adivinha só: Nós vamos passar o Natal com você! Você é tão sortuda. Só ter a mim aqui já é um presente. Normalmente nós vamos para a Riviera, mas devido a uma falha de comunicação, não somos mais bem-vindos na França. E minha mãe e o seu novo marido estão comemorando seu segundo aniversário de casamento e todos os nossos amigos, bem, recusaram nossos convites para passar o Natal conosco. Então aqui estamos nós. Se você puder me mostrar onde é a casa de hóspedes, Max e eu nos arrumamos. Eu prometo que não vamos incomodar. E você nem vai perceber que estamos aqui.
FERNANDA:       Ana, ficamos muito gratos por você e Max terem vindo para o Natal. Mas infelizmente a casa de hóspedes está em reforma, e a mãe do Eduardo está vindo, e ela vai ficar no quarto de hóspedes. Então acho que isso significa que você e Max deverão dormir no sofá-cama.
ANA:       Isso parece ótimo. Mas o que é um sofá-cama? E eu tenho que te avisar, eu realmente espero que você tenha os lençóis Samantha Riggins 600 com fios de algodão egípcio penteado. Sabe, eu tenho alergia a estes tecidos de derivados de petróleo, e tenho que evitar estes corantes feitos na Ásia. Da última vez que dormi sem os meus lençóis Samantha Riggins, eu fiquei com uma coceira por dias. Foi horrível.
EDUARDO:       Fê, querida, eu acabei de levar os lençóis para a lavanderia, e eles não voltarão pelos próximos dias. Podemos usar lençóis da coleção de Sam Walton? E vocês gostariam de um belo pedaço de chocolate Pierre Chardino no seu travesseiro?
ANA:       Seria ótimo. Esse seu marido é um doce. Talvez ele possa ensinar algumas coisas ao Max sobre como amar e respeitar os outros.
FERNANDA:       Mas que ótima ideia! Eu adoraria ser uma mosquinha na parede para ouvir essa conversa!
ANA:       Max e eu vamos nos ajeitar, e então eu e você teremos uma longa conversa, e eu vou te contar tudo sobre a minha vida desde a última vez que nos vimos. Isso vai ser muito divertido. Talvez possamos até fazer um tratamento facial – ou melhor ainda, uma pedicure!
FERNANDA:       Você pensa em tudo mesmo, não é? Eu já volto, preciso fazer uma ligação.

 

 

 

Cena 3
(Eduardo, Paulo, Carla, Ana, e Max estão sentados à mesa, tomando um “café da tarde”. Fernanda ainda está tentando limpar tudo antes de sua sogra chegar)
EDUARDO:       Paulo e Carla, vocês querem mais chocolate?
CARLA e PAULO:       (Juntos) Sim, pai.
EDUARDO:       Ana e Max, vocês querem chocolate? Acabei de fazer.
ANA:       De maneira alguma. Da última vez que tomei isso eu fiquei extremamente doente, e não consegui sentar direito por dias, se é que me entende. Essa coisa me deixa doente. Deve ser a lactose que me dá uma reação alérgica. A mesma coisa acontece quando como Queijo Cottage. Além do mais, ainda existe o risco de infecção pelo mal da vaca louca. Até onde eu sei, deve haver umas quatro coisas que eu posso comer.
EDUARDO:       Max, você quer chocolate?
MAX:       Sim, por favor.
ANA:       Max também não quer, certo amor? Eu quero que você fique saudável (apalpando seu coração) para que você cuide de mim quando eu ficar velhinha. Não seria lindo?
MAX:       Sim, amor. Mal posso esperar. Eu imagino como será maravilhoso quando você... (pausa) for velha o bastante para não se importar com o que os outros pensam, e se sinta livre para falar o que você pensa. (Sussurando para Eduardo) Eu só espero que a minha audição vá embora antes.
EDUARDO:       Fernanda, que tal se você se sentar um pouco e saborear um pequeno copo de chocolate? Você fica correndo pela casa parecendo uma louca. Eu estou ficando cansado só de observar você.
FERNANDA:       Eduardo, eu só estou ajeitando um pouco. Eu gosto tanto do Natal. O que seria melhor do que estar rodeada de minha família e dos meus amigos no Natal?
EDUARDO:       Andar de skate em um campo minado me vem à mente neste momento... E você não descansa há dias. O Natal te deixa insana...
FERNANDA:       (Interrompendo) OK, já entendi. Eu não sou ruim assim, sou?
EDUARDO:       Fernanda, todo ano é a mesma coisa. E sua família, bem, vamos só dizer que a maioria deles estão a um passo do “Cidade Alerta”... Você se lembra quando...
FERNANDA:       (Aos berros) Eduardo, eu tenho uma linda família, só que alguns de nós somos... (pensa um pouco) Únicos!
EDUARDO:       Únicos! Sua família faz “Os Simpsons” parecerem normais. Admita que a sua tia Márcia podia passar uma temporada inteira no “Casos de Família”. Eu nem... (Batidas na porta)
CARLA:       Eu atendo. (Carla corre até a porta)
VALÉRIA:       Você deve ser a Claudinha. Você lembra-se de mim? Da última vez que eu te vi você era um bebezinho deste tamaninho com o nariz escorrendo. Olhe só você agora, toda crescida, que moça! (Valéria tem os braços cheios de várias roupas e pequenas lembranças)
CARLA:       (Sem entender) Desculpe, eu não me lembro de você. E o meu nome é Carla.
VALÉRIA:       Claudinha, eu sou a sua tia Valéria e este é o meu marido Roberto e minha filha Michele. Roberto (Socando o ombro dele) diga oi para sua nova sobrinha. (Roberto vai cumprimentá-la, mas ela o empurra de novo) Esqueça, idiota...
CARLA:       Entrem, eu chamo a mamãe. (Gritando) MÃE, MAIS VISITAS DE NATAL.
FERNANDA:       (Surpresa) Valéria?  Valéria! É você mesmo? Eu não acredito. Já faz tanto tempo... Uns cinco anos. Onde você esteve?
VALÉRIA:       Eu passei os últimos cinco anos na... Prisão Feminina do Tremembé. Eu contratei um advogado ruim. Se um dia eu encontrar de novo aquele ladrão, mentiroso e trapaceiro eu... Bem, melhor não falar com as crianças presentes. Mas ninguém mexe comigo, você sabe – Pergunte para a Alice do bloco C. Da próxima vez ele vai olhar bem de perto o cano da minha espingarda. Não me deixe nervosa, eu posso te machucar. E eu quero que você conheça o meu marido Roberto.
FERNANDA:       (Mais surpresa) O que aconteceu com o Carlos?
VALÉRIA:       Carlos! Aquele ladrão, mentiroso, sujo e trapaceiro? Querida, ele foi há dois maridos atrás. Notícia velha. Eu troco de maridos mais rápido do que a maioria troca de carro. Depois de um tempo é hora de trocar o modelo antigo por (olha para Roberto) um Mustang novinho. Se é que você me entende.
FERNANDA:       Acho que sim. Prazer em te conhecer, Roberto. E quem é esta mocinha linda?
VALÉRIA:       Esta é a minha filha, Michele. Ela é a única coisa boa que eu consegui do meu quarto marido, Diego. (Olhando para baixo) Espero que esteja bem quente aí onde você está, Diego.
FERNANDA:       O que aconteceu com ele?
VALÉRIA:       Vamos apenas dizer que ele sofreu um terrível acidente. E eu espero que ele apodreça no...
FERNANDA:       Michele, quantos anos você tem?
MICHELE:       Tenho cinco. O Papai Noel sabe onde você mora?
FERNANDA:       Sim Michele, ele sabe. O que você quer de Natal?
MICHELE:       Um papai, um papai legal que não grite comigo, e talvez alguns bonecos do “Ben 10”, quem sabe o “Enormossauro” ou o “Diamante”. Eu acho eles demais! E uma blusa nova também seria legal.
VALÉRIA:       Aqui, Fernanda. Eu trouxe alguns presentes para você e sua família. Eu não sabia os tamanhos, então peguei vários diferentes. Se não servirem, eu troco mais tarde. Agora, se eu fosse você, não iria até o <nome do supermercado local> usando isso pelo menos pelos próximos 6 meses, se é que você me entende. Michele, Roberto, por que vocês não vão conhecer o resto da família. Eu quero falar com a Fernanda a sós. (Michele e Roberto vão para a cozinha)
FERNANDA:       Valéria, você não devia ter feito isso. E se...
VALÉRIA:       Ah, eu sei, mas é Natal e você é da família. Eu sempre gosto de pegar algumas coisas para a família. Isso é o que as famílias fazem: cuidam uns dos outros. Se tiver mais alguma coisa que você precise, é só me dizer. Se tem algum idiota te incomodando no seu trabalho, eu bato nele. Se o eu chefe está te enchendo, eu tenho amigos que podem dar um jeito nele. Você devia ter visto o que eu fiz para a Mara na semana passada. Bem, ela não...
FERNANDA:       (Interrompendo) Obrigada. Agradeço a oferta, mas não sou muito chegada a violência.
VALÉRIA:       E nem eu! Fê, você pode nos esconder, tipo, por alguns dias, aqui na sua casa? Acabamos de vir dirigindo de <outro lugar longe> e preciso de alguns dias de descanso antes de cair na estrada de novo. E mais um grande favor: podemos esconder o carro na sua garagem? Nós meio que o pegamos emprestado a caminho daqui. Roberto saiu no indulto de Natal, então se os tiras estiverem procurando a gente, só diga que faz anos que não nos vê. Espero que isso não seja um problema.
FERNANDA:       Você fez o quê? Eu não acredito! E você vem aqui e coloca a minha família em perigo. Não sei se posso fazer isso. O que eu deveria fazer? Você me dá presentes roubados, quer esconder um carro roubado na minha garagem e o seu marido é um procurado? Por favor, não me diga que também tem um corpo no porta-malas! Pelas minhas contas são pelo menos três crimes, e quem sabe quantas contravenções. Tem mais alguma coisa que você quer me contar?
VALÉRIA:       Não, parece que você entendeu toda a situação. Me desculpe. É Natal e nós não temos outro lugar para ir. Não comemos há dois dias, e não tomamos banho há quatro. Estamos dormindo no banco de trás. No último Natal antes de eu ser presa, eu passei o dia de Natal dentro de um Chevete 1987. Michele tem entrado e saído de lares temporários, e fugindo com os amigos para viver nas ruas. Eu não quero que Michele passe outro Natal em algum abrigo, ou me visitando por meia hora no dia de Natal. Ela não deveria ser procurada só porque quer ver a mãe. Eu quero que ela tenha um Natal de verdade, com uma família de verdade, e presentes, e comida quente. Michele nunca teve uma boneca, nunca foi na “Casa do Papai Noel”, nunca viu nem mesmo uma árvore de Natal, a não ser nas lojas. Eu já acabei com a minha vida, mas não quero isso para a Michele. A única razão de eu ficar limpa na cadeia era para eu poder sair e dar uma vida melhor para ela. Não existe mais esperança para mim, mas para ela ainda tem. Se não pudermos ficar aqui, eu entendo, só vamos continuar dirigindo... Talvez passemos o Natal em <algum lugar não tão longe>, dormindo no carro.
FERNANDA:       OK, vocês podem ficar por alguns dias, mas fiquem fora de problemas. Eu não sei como eu vou explicar isso para o Eduardo e para as crianças. Isso é uma loucura!
VALÉRIA:       Fê, obrigada. (Abraça Fernanda) Não é sempre que nos tratam bem. Deve mesmo ter alguma coisa especial no Natal. E se você disser a alguém que eu abracei você, eu quebro suas pernas, e você sabe que eu quebro mesmo. Você pode manter as cortinas fechadas?
FERNANDA:       Feliz Natal! Agora vamos guardar esse carro. Você e Roberto podem dormir no quarto da Carla. Ela pode dormir no meu quarto. De repente essa casa ficou muito cheia. E por favor, não machuque a Ana.
VALÉRIA:       Fernanda, sobre o porta-malas...
FERNANDA:       (Sai correndo e gritando) Eu não quero saber. Eu não sei de nada!

 

 


Cena 4
(Todos estão à mesa, tomando mais chocolate)
MAX:       Roberto, aquele seu carro é muito legal mesmo. Há quanto tempo você tem ele?
ROBERTO:       (Assustado) Beeeeem... Eu tenho ele só há poucos dias...
MAX:       E que ano ele é? Ele faz quanto?
ROBERTO:       (Falando bem devagar e pensando bem no que vai dizer) É um 2012, eu acho... Ele provavelmente deve fazer uns 7 a 8.
MAX:       Quilômetros por litro?
ROBERTO:       Não, anos...
MAX:       (Confuso) Talvez eu possa dar uma volta nele. Eu adoro o cheiro de carro novo.
VALÉRIA:       Isso, ótima ideia. Você e Ana vão dar uma volta. Dirijam o quanto quiserem. Aqui está a chave – Só não olhe no porta-malas. (Joga a chave para Max)
FERNANDA:       Eu não acho que seja uma boa ideia.
MAX:       Por que não? Você não confia em mim?
FERNANDA:       Eu só acho...
VALÉRIA:       O que ela quer dizer é que nós roubamos este carro a caminho daqui em um posto de gasolina perto de <algum lugar não muito longe>. Algum otário deve ter ido ao banheiro e deixou a porta aberta. Roberto fez uma ligação direta e nós nem olhamos para trás. Roberto é ótimo nisso, levou menos de um minuto. O engraçado é que achamos uma chave reserva no porta-luvas! A polícia nem teve uma chance de nos seguir.
FERNANDA:       Valéria!!!
ANA:       (Depois de um breve silêncio, começa a rir histericamente) Valéria, você é uma comediante e tanto! Faz tempo que não ouço uma piada tão engraçada. Roubou o carro... Que engraçado! Ah... Rir faz tão bem ao meu sistema imunológico. Sabiam que rir estimula a produção de endorfinas?
EDUARDO:       Então, Valéria e Roberto, como vocês se conheceram? Foi amor à primeira vista? Vocês parecem um casal muito feliz. Há quanto tempo estão casados?
VALÉRIA:       Eu te conto: foi sim, amor à primeira vista. Quando eu o vi com aquela calça marrom eu disse a mim mesma: “Este é o homem com quem eu vou me casar”. Eu estava no pátio de visitas da prisão e ele estava sendo visitado pela irmã. Nossos olhos se encontraram e BAM! Nos apaixonamos. Duas semanas depois eu fui até a prisão para visitá-lo. Na terceira visita, estávamos noivos. Ele se ajoelhou, com os guardas vigiando e tudo o mais, e me pediu para ser sua esposa. Foi tão romântico. Os outros presos até comemoraram. Dava para ouvir a gritaria de longe.
ANA:       (Rindo histericamente de novo) Imagine só! De onde você tira essas histórias hilárias? Você é muito engraçada! Vamos, termine a história.
VALÉRIA:       Mas do que ela está falando? Essa moça me assusta, e pouquíssimas coisas me assustam. A Karina do Bloco D me ASSUSTAVA...
EDUARDO:       Vamos, termine a história.
VALÉRIA:       Três meses depois, eu fui até a prisão e o capelão nos casou. Como Roberto tinha bom comportamento, a direção até nos deixou comemorar. Os colegas de cela até trouxeram “Ana-Marias” e nos fizeram um bolo.
ANA:       Você é muito engraçada. Pare com isso. Eu não consigo mais respirar! Chega de histórias.
(Batidas na porta)
PAULO:       Eu atendo!
SÍLVIA:       Oi, Paulo! (Ela o abraça)
PAULO:       Vovó? É você? Você está tão diferente! Que bom te ver. Você quer jogar videogame comigo? Eu te ensino a jogar.
SÍLVIA:       E de onde você tirou a ideia de que pode ganhar de mim? Eu comprei um videogame e estou praticando. Eu sou a vovó mais rápida dessas bandas, mocinho! Mas antes de eu te dar uma surra, me deixe falar oi para seus pais. E parece que tem uma tremenda festa aqui.
PAULO:       Você comprou um videogame? Você comprou um videogame? Eu preciso parar de beber tanto chocolate...
SÍLVIA:       Eduardo, Fernanda, Carla, cheguei! (Todos a abraçam e beijam)
EDUARDO:       Mãe, que bom te ver! Mas você chegou cedo. Não esperávamos por você até mais tarde. Como você chegou aqui? Seu voo só deveria chegar daqui a três horas.
SÍLVIA:       Eu quis te fazer uma surpresa. Peguei um vôo mais cedo e quando cheguei, aluguei um carro e vim dirigindo.
EDUARDO:       Você pegou um voo mais cedo, alugou um carro e veio dirigindo? OK, quem é você? E o que você fez com a minha mãe? Isso é alguma pegadinha ou de repente eu fui parar em um Universo Paralelo? Você está usando uma minicâmera escondida? Você nunca muda os planos, você odeia dirigir e agora olhe para você: Até parece que saiu de uma revista: mudou o cabelo e as roupas. Só falta agora você me dizer que tem um irmãozinho para mim a caminho...
SÍLVIA:       Carla, olhe só você, toda crescida. Eu não acredito que minha neta já está na escola. E Fernanda, você está ótima. Você perdeu peso? É a sua melhor aparência em anos!
FERNANDA:       (Chocada) Obrigada.
EDUARDO:       OK, já chega. Cadê a minha mãe? Agora você elogia? Você está doente? Precisa se deitar? Devo chamar um médico? Já sei: os aliens vieram e alteraram a química do seu cérebro! Só me faltava essa agora, minha mãe, um pôster de shopping... Amor, cadê meu chocolate?
SÍLVIA:       Eu estou bem. Na verdade, eu nunca me senti melhor.
EDUARDO:       E o que aconteceu? Por que de repente a minha mãe é uma garotinha? Desculpe, mas isso está muito difícil de digerir. Eu preciso me sentar. O mundo muda, os tempos mudam, mas a minha mãe? Mãe, há três anos você se recusou a comprar uma TV com controle remoto. Eu ainda consigo ouvir você dizer “Vivi sem isso por sessenta e dois anos, por que comprar isso agora?” Só no ano passado você comprou um telefone com teclas! Você ainda usa videocassete, e nem ajusta a hora dele! Minha mãe não mudaria tão rápido.
SÍLVIA:       Eduardo, depois que o seu pai morreu, uma parte de mim morreu com ele. Eu me fechei e não queria sair. Eu me sentia deprimida e sozinha. Não tinha amigos e todos os meus filhos moram longe. Eu tinha roupas no meu guarda-roupa que eu comprei na época do Jânio. Eu finalmente acordei. Eu percebi que eu precisava viver e que não deveria desperdiçar a minha vida como uma velha amarga.
FERNANDA:       E o que você fez?
SÍLVIA:       Eu comecei devagar. Primeiro eu fui ao shopping e comprei todo um novo guarda-roupa: novas roupas, sapatos, tudo. Depois eu fui a uma dessas lojas de roupas íntimas. Meu Deus, Satã deve viver naquele lugar, eu nunca me senti tão envergonhada De qualquer jeito, chega de verde-abacate para mim. E enquanto eu estava comprando, essa moça veio e me perguntou se eu queria uma maquiagem. Eu disse “uma o quê?” Eu estava tão por fora que não sabia nem o que era uma maquiagem... Eu recusei de início. Mas uma semana depois eu voltei lá e “voilá” – Uma nova mulher nasceu! Ela lavou meus cabelos, me fez um corte especial, e até me ensinou a me maquiar. Acreditam nisso? Maquiagem! Eu até fui no mercado só para comprar um spray de cabelo. Imaginem só, uma velha comprando spray de cabelo pela primeira vez.
EDUARDO:       E o que você fez depois?
SÍLVIA:       Eu comprei uma Harley! Não há nada como pegar a estrada e sentir os insetos batendo nos seus dentes.
EDUARDO:       Você não está falando sério.
SÍLVIA:       É claro que não! Eu não comprei uma Harley, mas olha isso aqui (apontando as orelhas).
CARLA:       Vovó! Você colocou piercings! Que legal!
FERNANDA:       Eu preciso me sentar. Isso é um pouco demais para mim. Eu suporto muita coisa, mas Silvia com senso de humor. Isso é um verdadeiro milagre de Natal.
SÍLVIA:       Eu sei que é difícil de acreditar. Nem eu mesma acredito às vezes. Mas pela primeira vez eu me sinto viva. Eu larguei os anos 50 e me sinto muito bem. E Fernanda, sua casa está linda. Eu acho que ela nunca esteve tão limpa. Você é incrível.
(Fernanda desmaia)

 

 

Cena 5
(Todos estão na sala, bebendo chocolate... Ana e Fernanda estão na cozinha. Fernanda está gemendo com a cabeça na mesa)
ANA:       Fernanda, acorde! Eu trouxe minha máquina de sucos comigo, e te fiz um fresquinho, com brócolis, batata, morango e romã. Eu também coloquei um pouco de canela em pó e uma pitada de erva-doce. Isso vai te levantar em um segundo, e também vai te dar um intestino regular, além de um cabelo brilhante.
(Fernanda se senta e bebe um pouco, e faz uma careta horrível)
ANA:       E então, gostou? Eu mesma fiz... É uma receita especial.
FERNANDA:       É muito... Diferente.
ANA:       Que bom que gostou. Eu fiz um litro e meio, só para você. Então beba tudo. E eu vou deixar a receita para você também poder fazer quando eu não estiver aqui.
FERNANDA:       Obrigada, já me sinto melhor. Nada choca mais do que a sua sogra se transformando em um ser humano... E com senso de humor! Ela até fez uma piada! Oh... Me dá mais desse suco.
ANA:       E quando você terminar o suco, eu tenho alguns comprimidos de erva-de-bode para você. Isso vai acalmar seus nervos, e também vai clarear seus dentes.
FERNANDA:       Ana, será que não existe fim para os seus... (Pausa) Talentos?
ANA:       Não, eu acho que não.
PAULO:       (Entra correndo) Mamãe, a privada não está funcionando! Ela transbordou por todo o chão do banheiro. E adivinha só: Estou jogando videogame com a vovó!
FERNANDA:       Isso não tem graça, Paulo.
PAULO:       Mãe, não é brincadeira, a privada entupiu. Você precisa limpar o banheiro. Tem umas boias...
FERNANDA:       Eduardo!  Eduardo!
EDUARDO:       Fernanda venha aqui, preciso falar com você. (Eduardo e Fernanda se encontram na porta) Amor, primeiro: o que foi que morreu na sua boca? Você precisa de uma balinha urgente! E segundo: o esgoto entupiu, absolutamente nada está descendo. Vamos precisar chamar um encanador... Na véspera de Natal! Vai custar uma fortuna... SE conseguirmos encontrar algum. Que bagunça. Isso sim é um Natal calmo e tranquilo.
FERNANDA:       (Calma) Deixe-me avaliar a situação: nós temos uma maluca Vitamegavegana e o seu marido, uma ex-condenada e um fugitivo com um carro roubado, com Deus sabe o quê no porta-malas, uma sogra com piercings nas orelhas e senso de humor, e vamos ficar até o pescoço de... esgoto! (Se desespera) Ahhhhhhhh! Cadê o meu suco?
EDUARDO:       Fê, você pode voltar só um pouquinho? Que história é essa de porta-malas?
(Batidas na porta)
CARLA:       Eu atendo! (E corre até a porta)
WILIAM:       Olá, eu sou Wiliam, o seu tio Wiliam. E você deve ser a filhinha da Fernanda.
CARLA:       Eu não tenho um tio Wiliam.
WILIAM:       Sua mãe está? Diga para ela que o irmão dela, Wiliam, está aqui. Pode ser?
CARLA:       Tá... Espere aqui. (Carla vai até a cozinha) Mãe, tem um homem lá fora dizendo que é o seu irmão Wiliam.
EDUARDO:       Carla, o seu tio Wiliam morreu há muito tempo. Diga para ele que ele deve estar no endereço errado.
(Wiliam vai até a cozinha. Assim que Fernanda o vê, engasga e derruba o copo de suco)
WILIAM:       Fernanda, faz muito tempo, não? Podemos conversar?
FERNANDA:       Até onde eu sei, você morreu quando a mamãe morreu. Então vá embora!
EDUARDO:       Oi! Eu perdi alguma coisa? Se você está morto, você parece muito bem para um cadáver...
FERNANDA:       Este é o meu irmão que voltou do túmulo. Wiliam, você não é bem-vindo! Por favor, vá embora. Volte para o lugar de onde você veio. VOCÊ me deixou, lembra-se?
WILIAM:       Mas Fernanda, já faz quase 20 anos. Não acha que é hora de conversarmos?
EDUARDO:       Eu não estou entendendo muito bem isso aqui. Fernanda, ele é mesmo o seu irmão?
FERNANDA:       (Hesitante) Sim, pelo menos eu acho que é.
EDUARDO:       Ôpa! Estou casado com você há quinze anos e não sabia que você tem um irmão ainda vivo? Você é mesmo cheia de surpresas! Carla, vá para a sala e deixe esses dois a sós um pouco. Eles têm muito que conversar. Eu vou fazer uma ligação.
(Todos saem, Wiliam e Fernanda ficam sozinhos)
FERNANDA:       Eu disse que não quero falar com você. Wiliam me deixe em paz!
WILIAM:       Eu não vou embora até ter uma chance de te dar isso. (Entrega um presente)
FERNANDA:       Isso não vai explodir, vai? Você não é um Assassino Serial? Acho que já tenho bastantes criminosos nesta casa para um Natal. E essa não é uma boa hora. Estou com a casa cheia de convidados e não tenho tempo para isso agora.
WILIAM:       E quando vai ser? Já faz vinte anos. Não acha que é tempo o bastante? Você não pode me evitar pelo resto de sua vida. Cedo ou tarde você vai ter que falar comigo.
FERNANDA:       Eu não sei. Eu não sei mesmo! Só vá embora, você é muito bom nisso.
WILIAM:       Não. Não desta vez. Eu volto em algumas horas. (Deixa o presente na mesa)
FERNANDA:       Até lá eu já me mudei para a Austrália. Eu não estarei aqui.
WILIAM:       Fernanda, por favor, isso é importante.
FERNANDA:       OK, volte em algumas horas, e TALVEZ possamos conversar. Eu disse TALVEZ. Apronte alguma, e eu vou falar direto com a Valéria!
WILIAM:       Eu volto depois.
(Wiliam sai. Fernanda se senta em silêncio. Depois de um tempo ela pega o presente e o abre. É um álbum de fotos. Ela abre na primeira página e começa a chorar incontrolavelmente. Eduardo entra)
EDUARDO:       Fernanda, você está bem? (Abraça ela) O que houve?
FERNANDA:       Eu passei toda a minha vida tentando esquecer o passado. E agora, na véspera de Natal, minha vida virou de cabeça para baixo. Ele abriu uma porta e deixou um monte de esqueletos saírem. Eu quero essa porta fechada, trancada e a chave jogada fora. Wiliam simplesmente entra aqui e abre as feridas, e isso machuca. Dói muito, e eu não suporto a dor.
EDUARDO:       Eu não sei por que ele voltou, e nem o que você passou, mas pelo menos dê a ele o benefício da dúvida. Fale com ele, só um pouco. E haja o que houver, eu estarei aqui com você. Você vai superar isso, eu prometo.
FERNANDA:       Obrigada amor. Mas que jeito de passar a véspera de Natal!
 

 

 

Cena 6
(Fernanda está sozinha na cozinha quando Wiliam entra)
WILIAM:       Fernanda, eu posso entrar?
FERNANDA:       Sim. Por que você voltou?
WILIAM:       Porque eu precisava. Eu devia ter feito isso há anos, mas tive medo de você me odiar. Eu prefiro ser um irmão morto a ser um irmão odiado. (O celular dele toca) Desculpe. (Ele olha para o celular) Eu preciso ir... Perece que apareceu uma emergência de Natal.
FERNANDA:       Quando você apareceu mais cedo, eu tive vontade de sair correndo. Anos de amargura e raiva, que eu já havia superado; tudo voltou. Eu fiquei emocionalmente paralisada. Eu lutei tanto para esquecer a minha infância, mas ela sempre volta e me bate na cara. Não importa o quanto eu tente, ela sempre machuca.
WILIAM:       Fernanda, eu sei que é tarde, e talvez até tarde demais, mas eu vim dizer que sinto muito... Você me perdoa? Eu sei que provavelmente não mereço, mas em algum lugar no seu coração tem um cantinho para o seu há muito perdido e dado-como-morto, irmão?
FERNANDA:       Eu tenho que dizer que isso vai ser difícil. Quando a mamãe morreu, ela era a minha força e a minha rocha, e quando você partiu, o meu mundo desabou. E lá estava eu, com treze anos, esperando que as partes normais de meu corpo aparecessem, e tudo desmorona... Ou melhor: explode! Mamãe morreu e eu fiquei sozinha com o papai. (Fernanda levanta a manga) Vê essa cicatriz? Eu estava ajudando ele na cozinha, e derrubei um copo de suco. E ele simplesmente pirou, e jogou os pedaços do copo em mim, e saiu. Eu fiquei chorando, meu braço ficou coberto de sangue. Com cacos ainda encravados na pele. Eu corri até os vizinhos, e a Dona Lúcia me levou para o hospital. Tive que levar vinte pontos. E aquele foi o meu terceiro “acidente” do ano, pelo menos eles acreditaram na história que eu contei. Quando eu voltei para casa, ele me perguntou onde eu estive. Quando eu disse que estive no pronto-socorro, ele só me disse para eu não ser tão dramática. Eu queria tanto que ele me dissesse que sentia muito, que estava arrependido. Eu queria que ele gostasse de mim, mas eu só consegui seu ódio. Eu também tenho uma cicatriz na perna, e duas nas costas. Todas “acidentes”, é claro.
WILIAM:       E quanto às cicatrizes daqui (coloca a mão no coração), aquelas que não podemos ver? Aquelas que levam mais tempo para curar?
FERNANDA:       Ainda estão ali. Eu as vejo e as sinto todos os dias. Wiliam, como você pode me deixar? Você era a minha esperança. Eu perdi a mamãe e você. Eu estava na corda bamba. Minha vida tinha acabado. Eu odiei você por ter partido.
WILIAM:       Eu precisei. Quando eu cheguei no hospital e vi o que ele fez a você, eu perdi a cabeça. Lá estava eu, um garoto de dezessete anos vendo sua irmãzinha, machucada e enfaixada. Eu queria matar ele. Na verdade, eu até tentei... Quando ele chegou em casa naquela noite, eu pulei nele, bati e gritei, o chamei de todos os nomes que conhecia, por causa do que ele fez a você. Ele só ficou ali, parado, em silêncio. Até que finalmente ele disse “Saia daqui e nunca mais volte. Se você voltar, eu termino o serviço”. Eu entendi o que ele quis dizer. E por isso, naquela noite eu parti e nunca mais voltei. Pensei estar fazendo isso por você, para salvar sua vida. Eu era só um menino perdido, com muita raiva e várias cicatrizes. E só agora eu consegui voltar, na esperança de que possamos recomeçar de onde paramos.
FERNANDA:       Eu não sabia... Tudo o que eu sabia é que quando eu voltei para casa, você tinha partido e eu estava sozinha. Ele nunca me disse nada. Ele só me disse que você fugiu. Sabia que ele nem mesmo me visitou no hospital? Algum tempo depois uma senhora foi em casa e disse que tinha encontrado um novo lar para mim, um lar seguro. Eu estava vazia por dentro, as lágrimas já tinham acabado, eu nem mesmo conseguia chorar. Peguei uma pequena mala, coloquei o pouco que tinha lá dentro e fui com ela. Nem mesmo disse adeus para ele. Eu nunca mais te vi de novo, então eu disse a todos que você tinha morrido. Foi mais fácil assim.
WILIAM:       Alguns meses depois, eu telefonei várias vezes. Mas nunca atenderam. Finalmente, um dia ele atendeu. E quando eu perguntei onde você estava, ele só disse “Não sei” e desligou. Foi a última vez que falei com ele.
FERNANDA:       Parece que nós dois temos cicatrizes...
WILIAM:       Você já perdoou o papai?
FERNANDA:       O quê? Enlouqueceu? Não! De jeito nenhum! Não dá! Não tem como eu esquecer aquela dor. Foi por isso que você voltou?
WILIAM:       Sim e não. Há uns quinze anos, eu conheci a Denise. Ela era maravilhosa, e mudou a minha vida. Nós nos casamos e tudo ia muito bem. Tivemos até um filho, Bruno. As coisas iam caminhando, era duro, mas conseguíamos levar. Até um dia, quando ele tinha cinco anos, eu o estava ensinando a andar de bicicleta. Ele estava muito descuidado e acabou batendo no meu carro. Fez um pequeno arranhãozinho no para-lama. E eu perdi a cabeça. Eu estava gritando enquanto ele chorava, e eu estava assim perto de bater nele. Mas isso me assustou e por isso eu parei. E como antes, eu fugi. Parece que fugir era a única coisa que eu era realmente bom... Eu entrei no carro e fui embora. Eu não podia suportar ser como o meu pai. Eu tinha muita raiva, e estava tirando da minha vida as pessoas que mais importavam para mim.
FERNANDA:       E o que aconteceu?
WILIAM:       Eu cheguei ao fundo do poço. Eu percebi que estava destruindo a minha vida, e estava destruindo a vida dos outros junto. Eu estava pensando em acabar com tudo, até que esse cara que trabalhava comigo me convidou para ir à sua casa. Lá eu descobri que ele também cresceu em um lar abusivo, e que ele conhecia as minhas lutas. Ele compartilhou comigo como ele lentamente conseguiu se levantar e arrumar sua vida. Eu comecei a ir à igreja pela primeira vez na minha vida, e desta vez, nada deu errado. Depois de alguns meses, Jesus Cristo mudou a minha vida de dentro para fora.
FERNANDA:       É, eu já ouvi essa história antes, mas por que você está aqui?
WILIAM:       Me deixe terminar. Não é ir à igreja que mudou a minha vida. Eu aprendi sobre amor e perdão. Meu coração era cheio de ódio, e isso estava me matando, e a todos à minha volta. Eu não podia me amar, e jamais poderia ser o marido e pai que eu queria ser. Mas Jesus trocou o ódio por amor. Depois de um tempo, eu aprendi a me perdoar, ao meu pai e eu tenho espaço em meu coração para Denise, Bruno e agora a pequena Suzana. E o melhor de tudo: agora eu sou livre! Livre para não ser igual ao meu pai, eu não sou mais escravo da minha infância, vivendo com aquela amarra emocional que sugava a minha vida. Eu sou livre para amar e para viver. Não quer dizer que não sinto dor, e nem que essas memórias não me assombram, mas elas não me controlam. É por isso que estou aqui, Fernanda, é por você. Eu tenho espaço no meu coração para você, mas eu preciso do seu perdão. E eu quero que você seja livre. Eu quero que você experimente o amor e o perdão que mudou radicalmente a minha vida.
FERNANDA:       Como assim?
WILIAM:       É o sentido do Natal. Natal é sobre arrumar a casa. Arrumar a casa para o amor e o perdão. Arrumar a casa de seu coração para Jesus. Arrumar a casa de seu coração para um irmão que estava morto, mas que agora está muito vivo. Fernanda, você me perdoa? Tem espaço no seu coração para mim?
FERNANDA:       Wiliam, eu também sinto ódio, e está me matando. Eu odiei você, eu odiei o meu pai, eu ME odiei. Eu passei toda a minha vida fazendo os outros felizes enquanto eu morria por dentro. Sim, tem espaço no meu coração para o meu não-mais-morto irmão, mas eu não sei como perdoar o papai. Ainda dói muito, mas eu acho que posso tentar arrumar a casa para este Jesus. Eu estou morrendo aqui.
WILIAM:       Fernanda, vamos orar...
 

 

Cena 7
(Fernanda e Wiliam estão na cozinha olhando o álbum de fotos e sorrindo. O celular de Wiliam toca)
WILIAM:       Nossa, eu esqueci... Desculpe, eu preciso atender essa ligação. (Sai)
(Eduardo entra com uma enorme barra de chocolate)
EDUARDO:       Aqui amor, eu pensei que você poderia precisar disso. É um presente de Natal. E é fresco... Eu comprei na semana passada!
FERNANDA:       Obrigada amor, não precisava...
EDUARDO:       Tudo para fazer a sua vida mais fácil.
FERNANDA:       Sabe, não sei se vou precisar tanto assim disso agora. Amor, eu fiz um pouco de suco para você...
(Batidas na porta)
EDUARDO:       Eu devo atender? Talvez seja lá quem for vá embora... (Mais batidas) Amor, pegue a espingarda, eu espanto seja lá quem for... Onde está a Valéria quando se precisa dela? Não sei se tem mais espaço...
FERNANDA:       Não sei, acho que podemos conseguir mais um espaço para o Natal. (Fernanda abre a porta e Wiliam está lá, usando um macacão) Wiliam? O que você está fazendo aí?
WILIAM:       Alguém ligou para o encanador? (Wiliam vira de costas e mostra o que está escrito no macacão: “Encanamentos Wiliam”) Eu sou realmente bom em mandar a sujeira indesejável embora.
FERNANDA:       (Rindo) Wiliam, fala sério! (Para Eduardo) Quem disse que não encontraríamos um encanador na véspera de Natal? Acho que esse é o nosso “Milagre da Rua 34”!
(O telefone toca, Fernanda atende)
FERNANDA:       Alô? (Pausa) Ana! (Pausa) Polícia!!! (Pausa) É... Sim... (Pausa) O quê? (Pausa) OK, já estamos indo. Tchau. (Desliga)
EDUARDO:       O que houve?
FERNANDA:       Parece que Ana ficou sem ginseng, então pegou o carro de Valéria para comprar mais no mercado.
EDUARDO:       E? Qual o problema?
FERNANDA:       Ela pegou o carro da Valéria emprestado. Ela pegou o carro da Valéria emprestado!! (Eduardo ainda não entendeu) O carro dela é roubado, esqueceu? E agora Ana foi presa por roubo de veículo.
EDUARDO:       Grande coisa!
FERNANDA:       Vá se vestir e chame o Max. Eu explico tudo no caminho da delegacia.
EDUARDO:       Eu vou pegar o chocolate e o suco. E talvez no caminho possamos cantar algumas canções de Natal, como “Jail Bells” ou “Doze crimes de Natal”. Talvez Valéria possa nos dar algumas dicas...
FERNANDA:       EDUARDO!

FIM

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